terça-feira, 19 de agosto de 2025

Ode ao meu pai triunfal

O meu pai nasceu em 1945. A mãe dele morreu quando ainda era criança e o pai dele, viúvo, casou uns anos mais tarde com uma senhora, também viúva e sem filhos, que criou o meu pai como se fosse filho dela e a quem ele carinhosamente chamava madrinha. E a quem eu depois chamava avó, claro.

O meu pai quando era criança tinha o cabelo tão loiro que quase parecia branco e depois quando cresceu tinha cabelo tão preto como carvão.

Fez a quarta classe, como todas as crianças da altura, e depois foi trabalhar como polidor, para uma oficina de um tio. Mas cedo percebeu que aquilo não ia ser fácil, e foi estudar à noite para tirar o curso comercial. Conseguiu anos depois entrar no banco, a trabalhar como contínuo, onde foi subindo até ficar no arquivo.

O meu pai gostava muito de filmes e ia muito ao cinema quando era jovem. Foi ele que me passou este gosto pelo cinema também. Deixava-me ver filmes de terror com ele quando eu era criança (já não serve de nada fazerem queixa à CPCJ). Fiquei contente quando finalmente, já velho e nos últimos anos de vida, acedeu a instalar tv cabo em casa e passava os dias a ver os filmes todos que davam nos canais de filmes.

Julgo que o meu pai deve ter tido uma juventude bastante libertina, porque só conheceu a minha mãe quando já tinha 34 ou 35 anos, e então aproveitou bem a vida até essa altura. Mas depois de ter conhecido a minha mãe, sempre a tratou muito bem e não andava cá em vidas malucas. No fundo, gozou quando devia ter gozado.

O meu pai era um coração mole e bastante generoso e dava sempre uma moeda a um pedinte ou emprestava sempre dinheiro a quem quer que fosse que lhe pedia. Quando eu era jovem, às vezes vinha ter comigo e dava-me 10 ou 20 euros e dizia: 'toma lá para tomares um copo'

Foi o meu pai que me ensinou a não julgar prostitutas, bêbedos ou drogados. Dizia sempre que nunca sabíamos as circunstâncias que tinham levado as pessoas até àquela vida e que também não sabíamos a nossa vida no futuro.

O meu pai era preguiçoso e deixou-me esse legado. Nunca fez nada em casa em termos de arranjos, também porque não percebia nada. Pagava sempre para irem lá arranjar. Se calhar por isso eu comecei a interessar-me por bricolage, para ir fazendo o que ele não sabia fazer.

Quando o meu pai se reformou, cedo, aos 55 anos, as pessoas diziam-lhe: agora arranja uma horta e vai para lá passar o tempo a plantar coisas. E ele ria-se e respondia sempre de forma irónica: vou vou, é mesmo isso. E passava os dias a ir tomar café e a ler o jornal e a fazer palavras cruzadas e sopas de letras e a passear a nossa cadela e a fazer sestas e a ver televisão e a ir ao clube jogar sueca e a ajudar a minha mãe nas tarefas de casa e levá-la ao supermercado ou ao médico ou onde ela precisasse de ir.

O meu pai era o esperto e o engraçado dos meus pais. Era também chato, era capaz de passar viagens inteiras de carro a falar e a contar várias vezes as mesmas histórias, e acho que também herdei isso dele. Também era um pouco nervoso, como eu, mas era bem mais paciente.

O meu pai era o fixe quando eu era adolescente e queria ir sair e a minha mãe ficava sempre muito apreensiva e ele dizia: deixa lá a miúda ir.

Foi por causa do meu pai que terminei o meu curso superior. No segundo ano queria desistir, deixei de ir às aulas, e o meu pai insistiu que era bom ter um curso, melhor do que não ter, e que me ia pagando as propinas, nem que eu fosse fazendo uma ou duas cadeiras por ano apenas (eu já tinha uns trabalhos para me orientar). E eu continuei e acabei a custo e a verdade é que é melhor ter do que não ter e não sei se hoje tenho o que tenho por causa dele. Eu gosto sempre de pensar que sim.

O meu pai teve um enfarte cinco anos antes de morrer e eu vim para casa a correr do trabalho e ele estava dentro da ambulância do INEM a ser reanimado e eu só pensava que se ele morresse eu não me lembrava da última coisa que tínhamos falado e que era injusto ele morrer sem eu me poder despedir dele. Mas um milagre aconteceu e ele recuperou depois de quase uma semana em coma e três semanas nos cuidados intensivos e eu pude falar com ele por mais 5 anos, que aproveitei muito bem, porque sabia que qualquer momento podia ser o último.

Nunca vi o meu pai e a minha mãe discutirem assim feio. Claro que chatices toda a gente tem, mas não fui criada em ambiente de gritos e berros e por isso acho sempre isso estranho. A coisa mais bonita que a minha mãe me disse foi, quando o meu pai estava a morrer no hospital, que chorou muito de tristeza mas que nunca houve nada para pedir a desculpa, porque nunca tinham dito nenhuma palavra um ao outro de que se arrependessem. E eu fico contente que eles tenham tido 45 anos juntos e felizes.

Sou em tudo igual a ele, fisicamente, feitio, manias, gostos, e então gosto de pensar que, apesar de ter morrido, deixou um bocado bem grande dele neste mundo, não morreu completamente. Sou o seu legado e com muito orgulho.

Até já, paizinho <3

Sem comentários: